A Queda


Um reflexo de sol num espelhinho surgiu do nada e passou rápido como o tirrin-tirrin da bicicleta que se desviara atleticamente do obstáculo que se tornara pra si mesmo na homeotérmica tarde que o envolvia em estranhos pensamentos sobre ovos cozidos.
Aquela iluminação repentina de consciência, naquela latitude e longitude determinadas, somadas as todas as partículas de monóxido de carbono que temperavam a vida na metrópole, o fizera sentir uma fisgada efusiva no cérebro.  Sentiu o ressoar de um sino no coração de uma gruta e, inutilmente, tentou descobrir a medida exata de tanto vazio, sem antes descobrir se aquela cegueira de sentidos era sua ou da caverna de que o ciclista se desviara. Sua pupila horrorizada com aquela ideia tentou, num impulso contrátil, diminuir a quantidade de lá fora naquelas palavras tão desprendidas de significado. Foi como se a coisa ficasse presa na própria coisa enquanto o som do atrito entre o cinza da rua e o negro da roda de todos os automotores torcessem seus pensamentos.
O chão vacilou entre seus pés; o  ciclista surgira como um gafanhoto que salta do inconsciente num gesto tenso, agudo e branco. Houve um desequilíbrio interno e suas pernas, sem saber o que fazer com aquilo, colocaram-no em uma queda gradual, fria e lenta, ao passo que seus braços se abriam num abraço sem volta, transmutados em massas burras de ar.
Por um segundo ele foi vítima do peso de seja lá o que for, estava amarrado a  gravidade, sentiu na alma o empuxo da cidade. Ele era aquele lugar e aquele lugar era ele. A geometria das arestas dos prédios, a esquizofrenia dos carros, o suor desamparado que lhe brotava, úmido, na testa.
O vento carregou seu corpo pelas mornas mãos do espaço. Nos segundos seguintes ele não soube mais de nada, seu pensamento era um ovo cozido, a bicicleta não fazia sentido e a Bolsa de valores de Nova York registrou altas e baixas durante o dia como nossos sentimentos por alguém.
O sujeito caiu e a cidade continuou funcionando regularmente.


Sempre Seus: Vito Julião

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