Sobre bicicletas e ervas daninha






A ordem era clara: “Não saiam dessa rua!”.
E eles iam obedecendo e com suas bicicletas, pedal pós pedal, rodando de lá pra cá, inventando cenários e obstáculos enquanto eram assistidos pelo sol que ia escalando o céu e avançando os ponteiros do tempo manhã a dentro.
Mas a rua era pequena e ia perdendo a graça rapidamente. Uns mais atrevidos pedalando rapidamente invadiam outras ruas e o coração de todos pulava por debaixo das costelas enquanto um ia até o meio da outra rua, derrapava e voltava correndo como se a rua atrás dele estivesse desmoronando. Aquilo soava como um desafio, logo um mais ofendido pela coragem do primeiro ia um pouco mais alem e voltava esbaforido como se sua mãe pudesse aparecer de trás de um poste dizendo que ele estava reprovado numa espécie de teste de obediência.
E assim a brincadeira prosseguiu até que um desafio maior surgiu. A lagoa da Pampulha não era tão longe; uns poucos e calmos quarteirões e estariam de volta como se nunca tivessem saído daquele retângulo que delimitava a rua permitida. Alguns mais medrosos (ditos obedientes) tremeram frente à ideia. O meio da rua ao lado é longe de mais para quem não tem fogo de espírito.  Disseram firmemente que não iriam e um tumulto desses que só quem jogou bola descalço na rua sabe fazer se formou, mas de uma maneira estranhamente natural se instaurou um tribunal. Os mais velhos sempre mais influentes e entusiasmados tentavam convencê-los, sabiam que era preciso que todos tivessem culpa, não sabiam o motivo, era como umas apólices de seguro, uma garantia, todos precisavam estar juntos. E nada se resolvia e o debate esquentava, argumentos e contra argumentos voavam para todos os lados, mas alguns pareciam irredutíveis. Entre eles houve quem temesse pelo cancelamento da aventura. Até que um, mais espero que muitos ali, teve uma ideia brilhante: que todos votassem! Era realmente uma excelente ideia, os mais velhos se entre olharam conscientes da genialidade do plano, inconscientemente eles sabiam que a democracia não escolhe lados e serve a todos os fins. E assim foi, em uma contagem regressiva de 3, 2, 1 quem quisesse ir a lagoa deveria levantar a mão. Votação feita, alguns mais novos e medrosos acabaram por aderir à causa da maioria, os que permaneciam de mãos abaixadas sentiam o peso dos olhares dos colegas.
Assembleia encerrada todos montaram suas bikes e se puseram a caminho da Pampulha e os que antes haviam dito que não iriam acompanhavam o grupo de uma posição mais tímida, confusos por não saber mais o que pensar enquanto dentro deles ia um segundo debate, obedecer a mãe ou a democracia; para esses as rodas nunca foram tão quadradas. Já para os outros era diferente, iam airosos com as mãos firmes nos guidões e pés confiantes nos pedais. Aquilo era como a marcha sobre Roma.
Que sensação fantástica, o ronronar das corente mantinha eles unidos enquanto marchavam pelos condomínios, prédios e casa que observavam indiferentes a coragem e a astucia dos transeuntes.
Conforme o destino ia se aproximando uma coisa ia se alargando nos peitos  deles, era aquilo que uns por ai dão o nome de felicidade e já dava pra ver a senhora expectativa crescendo forte e saudável nos jovens corações e, como erva daninha que se espalha por todo lado, ela ia infestando a imaginação dos pobres coitados, alguns diziam que já dava pra sentiam o cheiro da lagoa, e, apesar de não muito agradável, aquilo enchia o espírito deles de êxtase.
Um comentou que descobrir a América devia ter dado uma sensação parecida, ao que outro riu e respondeu que só se ela tivesse sido descoberta por piratas. Todos riram.
Quando chegaram seus sorrisos riscavam suas caras de uma ponta a outra, imensos; mal cabia entre uma orelha e outra; eles pararam e desceram orgulhosos de suas bicicletas. Sentiam-se heróis, desses que resgatam o novelo de ouro, eram filhos de Deus que chegaram à terra prometida depois da prisão faraônica e despótica de mães e avós autoritárias.
Estavam ali, a alegria parecia não caber naqueles corpos em desenvolvimento, o brilho do sol na água, o balé suicida das folhas secas, o a brisa recompensadora de quem abriu o mar vermelho sobre rodas, tudo parecia infinito, tudo coroava as missão, porém após um minuto, dois minutos, três minutos  grande parte da magia já tinha evaporado, e tão discretamente que eles não sabiam o por que nem como mas intuíam que algo havia mudado. Ninguém dizia, todos sentiam. A grama começou a coçar e um por um eles foram se levantando e sem saber muito bem o que fazer com aquilo que sentiam ficavam inquietos, e pouco a pouco todos estavam montados em suas bicicletas pedalando. Silêncio... O almoço devia estar quase pronto e o risco de serem descobertos aumentava junto com a fome. Uma coisa estranha ia tomando conta da situação e o ronronar das correntes incomodava. A volta parecia mais longa que a ida, e o essa espécie de cansaço emocional causava a impressão de que pedalavam na areia fina.
De novo na única rua permitida o oco por entre as costelas era tão grande que fazia mal. Não havia avós furiosas a espera, não tinha mães despóticas escondidas atrás dos postes, na verdade não havia mais nada, a realidade parecia menos colorida que a promessa, e ir até o meio da rua ao lado já não era mais tão legal.
Espero que eles tenham aprendido a lição, pois ela será de muita utilidade no futuro.



Sempre seus: Vito Julião  

Nenhum comentário:

Postar um comentário