Crônicas e memórias da av. Tucumã – Parte 1 de 4



  
Apesar do nome de avenida era apenas mais uma das centenas ruas de São Paulo, mas era uma bela de uma rua. De uma sequencia de três ela era a do meio, pouco movimentada, plana com uma leve curvatura contornando o morro a que pertencia, perfeita para se jogar bola.
E como todo jogo de bola precisa de um gol, e nada caia tão bem quanto o inúmeros e retangulares portões que povoavam a rua. Tinha de todo tipo, de madeira, de ferro, bonito, feio, mas não importava, o importante era que fosse parecido com um gol.
Não era algo muito agradável para quem morava atrás dos portões, afinal, não mediamos esforços para dar o chute mais forte que podíamos, qualquer chute meia boca era uma ofensa ao ídolo que imaginávamos ser.
O problema é que as grades de ferro não sabiam disso e a cada chute não defendido era um estardalhaço sem tamanho. Para nós a coroação de uma bicuda digna de replay, para os que moravam atrás do gol um suplício periódico. Era ouvir a buzina das peruas ao cair da tarde que o cortisol caia no sangue, era tirarmos os uniformes escolares que corríamos pra rua praticar nossos chutes dantescos.
Em geral ninguém gostava quando seu portão era agraciado com as boladas, mas eram poucos que se davam o trabalho de reclamar, nunca parei pra pensar no porquê, qualquer dia eu perco um pouco de tempo pensando nisso. A questão era que havia uma senhora de nome Clementina, uma portuguesa que morava sozinha, dona de um belo portão branco de lanças, visinha da minha vó. Ela nasceu na metrópole ma veio ainda pequena para a colônia, ou vi dizer que quando jovem ela voltou para Portugal para morar com parentes, não sei quanto tempo ela ficou por lá, mas sei que voltou e trouxe com ela malas e malas de rabugice lusitana. Era a bola encostar no seu portão que ela saia esbravejando com os braços macilentos para cima enquanto todos corriam sem direção apenas para fugir de suas ladainhas sobre algo que tinha do lado de lá que não tinha do lado de cá. Pior era quando a bola caia no seu quintal, era uma briga danada entre  a gente para ver quem ia tocar a campainha. O sentimento que circulava entre a galera era como uma sentença de morte precedida por tortura militar. Não havia escapatória do sermão que viria junto com a bola.
O caso é que apesar de tudo os meninos respeitavam o tal portão branco, até que num sábado de janeiro, onde os dias são claros até de noite, um dos garotos ganhou de aniversário uma bola que era o sonho de consumo do bairro inteiro, uma bola de primeira, dava até dó em pensar em chutar ela, mas esse sentimento passou rápido. A presença da bola nova provocou uma espécie de evento na rua e para comemorar nos reunimos e decidimos fazer golzinhos de madeira, todos se ajudavam e era prego, martelo e dedo roxo pra todo canto. Quando o relógio bateu seis horas havia dois montes de madeira pregada que aos nossos olhos pareciam monumentos dignos de maravilhas do mundo moderno. Rapidamente dividimos os times (os Concamisa versus os Sencamisa, como sempre) e começamos um jogo que de tão intenso e envolvente até parecia final de copa do mundo. Mas de repente o pobre aniversariante em um chute mal calculado acertou a ponta de uma lança do tal portão branco da Dona Clementina, como a gente chamava ela, o barulho foi tão alto que acho que deu para ouvir da rua de baixo. Mas o pior ainda estava por vir, na sua solidão a velha cultivava com todo esmero uma roseira magrinha perto da porta, era ela dar um botão vermelho que  já se envergava toda sobre o peso da própria flor e para o nosso terror a bola ainda cheia de energia foi bêbada saltitar no quintal da portuguesa acertando a tal roseira quebrando ela bem no talo, a bola ainda rodopiou e rodopiou parando bem enfrente a porta. Ninguém corria ou respirava, todos estavam atônitos. Nossos pensamentos se dividiam em dois: primeiro, claro: “será que a bola furou?” e o segundo era: “fudeu!”
A porta foi abrindo e rangendo devagarzinho e a dona da roseira já ia saindo com os braços pra cima quando ela viu a sua plantinha estirada de forma patética no chão. Ela abaixou lentamente, pegou a bola que parecia pender para lado e veio silenciosa na nossa direção. A esperança luziu nos nossos olhos, Dona Clementina estava com uma atitude diferente da que geralmente tomava, tinha uma expressão serena nos olhos e um passo pensado. Ela entregaria a bola! Quando ela chegou no portão de repente todo o brilho dos nossos olhos foi arrancado. Quando ela já levantava os braços para passar por cima do portão a bola, a portuguesa num movimento inesperado e enérgico furou a bola nas lanças, deu as costas e voltou quieta para dentro, mas antes de fechar a porta ela mexeu delicadamente na roseira com os pés e de da escuridão do interior da casa resmungou alguma coisa.
 Hoje, dos poucos que restaram na rua alguns dizem que ela disse: “filhos da puta”, outros dizem que o que ela disse mesmo foi: “nojentos”, há ainda versões como: “pivetes” “porcos” “macacos” “mentecaptos” “delinquentes” “bucéfalos” e “pipocas”, enfim, não importa, depois daquele dia o portão branco da dona Clementina se tornou uma lenda, tudo que caia lá era tido como irrecuperável, fosse bola, lagrima, pipa ou pião.


Sempre Seus: Vito Julião



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