O narrador




É curioso como os ouvidos de nós, narradores, captam pensamentos de personagens que nem desconfiávamos. É o exemplo desse músico que aqui está. Até ontem nem existência propriamente dita ele possuía, agora fica ai, me arrastando por pensamentos que me são muito delicados. Uma verdadeira falta de respeito.
Veja você que alguns instantes atrás ele encontrou um amigo, parecia ser de infância pelo modo como se tratavam, e, após todo aquele blá blá blá que toda conversa recém-nascida tem o amigo deu um paço arriscado.
 - Meu caro, realmente fazia muito tempo que não nos víamos, a música tem nos tomado mesmo muito tempo, um tempo precioso.
 -  Preciosíssimo, um verdadeiro tesouro...
 - Exatamente, mas deixando de lado partituras e harmonias. Como anda o coração?
Foi desse ponto que a bendita da personagem começou a me incomodar.
Na sua cabeça ele formulou varias respostas esdrúxulas que havia visto na internet, apenas pra desviar o assunto ou, no mínimo, tirar a seriedade que ele carrega nas entrelinhas. Mas não, não abril a boca. Sabe quando se está à beira mar, tranquilo, e uma onda de má índole vêm nas pontas dos pés e num piscar de olhos nos põe de pernas pro ar, tira-nos o norte e fazendo nossos olhos e narinas arderem com o sal  termina rindo da nossa cara enquanto morre rolando na areia. Pois então, foi exatamente isso que se passou dentro dele, eu só fui tragado pelo empuxo.
Como terminou a conversa, se ele deu alguma resposta, se ele desconversou, se ele saiu andando atônito pelas calçadas cinzentas afogado em si mesmo ignorando totalmente o pobre do amigo que ficou lá, desconcertado pela reação da sua pergunta, eu não sei; na verdade nem ele mesmo sabia, simplesmente chegara a casa, talvez uma onda o tenha arrastado até ali.
E lá estava ele a pensar e pensar e pensar, enchendo a minha cabeça. Amor, já passara maus bocado por causa dessas quatro letrinhas. Fazia tempo que não pensava nisso.
Foi até a cozinha, abriu a geladeira, não sabia por que tinha feito aquilo, viu uma jarra de água gelada, não era a intenção inicial, provavelmente não havia intenção inicial, mas um copo de água gelada veio bem a calhar.
Peço desculpas, disse que esse ai que agora está bebendo água gelada está a me importunar com pensamentos que,  acredito eu, você já deve ter desconfiado de que natureza são. E, estranhamente eu não digo nenhuma palavra sobre as sinapses que acontecem dentro da cabeça da personagem. Realmente me desculpe, detesto escrever sobre esse assunto. Como ele ali, esse tema me é uma batata quente sem tamanho, não sei lidar, não sei falar, não sei escrever, portanto sou a pessoa menos recomendada para tratar dessa famigerada palavrinha. Rezem vocês para que outro narrador sintonize também esses pensamentos que, com absoluta certeza, como disse outro, não foram endereçados a mim, e que, Deus queira, ele saiba tratar melhor desse assunto.
Espere, ousam, enquanto desculpava-me esqueci do bendito músico e fiquei só aqui na cozinha. Agora posso ouvir o som de uma flauta transversal. Então é esse instrumento que ele toca. Feliz surpresa! Combina perfeitamente com o espírito desse sujeito esguio, instrumento capaz de tristezas e felicidades extremas.
E, vejam vocês, agora ele está a tocar. Infelizmente vocês não podem ouvir a melodia e como péssimo narrador que sou (já devem ter reparado), não vou me atrever a descrever, seria um crime. Deixo por conta daquilo que, uns mais outros menos, todos possuem: Imaginação.
O máximo que posso adiantar é aquele vendaval de pensamentos parou. Agora a única coisa que ele pensa é um imenso e sereno não pensar. Todo ele é música, todo ele é flauta. Sua alma se contrai angustiada em notas tristes para depois seu coração se expandir imensamente em notas quentes e, por uns instantes o tal do AMOR perdeu o sentido, perdeu a existência.
Torço para que nunca nem um narrador tope com os pensamentos dessa personagem, por que ao fim de todo seu trabalhoso esforço de fixar pensamentos e pensamento se veria obrigado a rasgar e atirar tudo ao lixo, pois veria que qualquer coisa relacionada a essa quatro letrinhas se evaporam ao serem descobertas, e perdem a existência a uns sopros mais fortes que flutuam por ai.



Sempre seus: Vito Julião

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