Uma coisa, um copo, e um cachorro




 Aquelas mesas, aquelas cadeiras, aquele balcão, tudo amadeirado. Uma madeira destituída  daquela calma característica das madeiras; uma não nobreza. Moveis que perderão sua essência em meio aquela fumaça.
   Mas não eram só eles que haviam perdido sua constituição, naquele bar uma figura comum, suja e suada, agarrava-se a um copo vazio. A criatura tinha os cabelos negros, sebosos e desarrumados cobrindo-lhe os olhos. Não dava pra saber se olhava para o copo, para a mesa, para o nada ou buscava dentro de si algo que tinha perdido ou tinham-lhe roubado. Se perdera ou haviam lhe roubado não tinha certeza, mas esperava que das varias dozes que passaram pelo copo vazio, de uma  saísse a resposta enquanto o tempo, predador implacável, corria atrás das suas vitimas incógnitas.
   O vulto humano não se movera por horas, até o vento parecia ter medo de tocá-lo, ao passo que o torpor parecia ter encarnado na fumaça que fremia a sua volta. Ele perdera-se em seus labirintos? Não! Um movimento... ele afastou pesadamente o copo, o cheiro acre que ele exalava não o incomodava mais. Sentia-se como um papel molhado, um não-sei-o-que indizível invadira-o, tinha nojo do seu passado como quem foge de uma doença exposta e contagiosa. Culpava o copo, a mesa, o chão... mas esses apenas o olhavam com dó, aquela que apenas os objetos sabem ter. Não  sabia se era irritação, ódio ou apenas seu estômago, mas sabia que não suportava a compaixão do próximo; soava-lhe como um insulto. 
        Quem eram eles para sentir pena dele! As coisas estavam instáveis, inconstantes, insuportáveis, in... 
        Uma confusão interior imprevista somou-se ao barulho embriagado do bar. Calem-se! A náusea e a fúria somaram-se e foram discutir na garganta dele. Desesperado apoiou os cotovelos na mesa e afundou as orelhas na mão e fez desaparecer os dedos no cabelo. Calem-se! Como não obedeciam quis levantar e fazê-los calar a força. Empurrou a mesa com toda energia, o copo, pobre inocente, beijara o chão e explodira de paixão. Não sabia por que, mas o bar inteiro oscilava como as espumas do mar; ao primeiro passo teve a impressão de ter pisado no mais macio  dos colchões, olhou para o chão e os cacos de vidro dançavam zombando dele, quis apoiar na mesa, não havia mesa, o chão era, e foi, inevitável. Ouviu alguns risos, uns contidos, outros nem tantos, mas todos maldosos. Notas cruéis brincaram na fumaça dos cigarros, humilhando aquele corpo, aquele substantivo, jogado no cimento, em meio ao que já foi um copo. O garçom e mais um homem foram ajudá-lo, menos por caridade que por obrigação - tinham que tirar o estorvo do caminho - o garçom fungava, de sobrancelhas contraídas, o outro fazia tudo meio hesitante,  aquilo não parecia dever dele. Ao perceber a aproximação destes nem- tão-bons-samaritanos sentou-se desajeitado sobre suas pernas, e com uma mão balançava e atacava os ares, para afastar qualquer um que chega-se perto, e com a outra, hermeticamente fechada sobre o ventre  ensanguentado, segurava a  raiva a dor e a humilhação que sentia. Eu não preciso de ajuda! Eu não preciso de ajuda! Mais grunhidos. A cena era deplorável até para mim, pobre cachorro pobre. Com a cabeça entre as patas, faminto, mas apenas de comida, não dessa coisa que eles sentem fome.

Sempre seus, Vito julião

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