A campainha toca.
- Dona Maria do Carmo?
- Sim, pois não?
- Entrega pra senhora.
Era tarde quando o carteiro chegou, tanto que eu estava na varanda do fundo, observando os últimos raios de sol a baterem na goiabeira enquanto maneava meu cachimbo de palha, costume de velho do interior, a fumaça tornava a tarde mais macia e deliciosa que de costume.
Acabava de receber um embrulho sem remetente, envolto em papel pardo que trazia, apenas, o número da minha casa e meu nome escrito a mão, muito mal escrito por sinal. Abri o pacote curiosa, afinal, com toda essa modernidade e individualismo, nunca mais vi as fuças dos carteiros, me trazendo cartas ou encomendas, mas contas ele traz toda hora, dentro havia uma caixinha de papelão, fiquei mais curiosa, comecei a lembrar das boas sensações de mistério e ansiedade que uma correspondência provocam em nossa pessoa. Abri; era um caderninho azul escrito em dourado “endereços”, já bem apagado, maltrapilho, de folha amarelas e desbotadas; quase, aposto , tão velhas quanto eu; aparente mente não havia nada escrito; folheie, e na última página estava gravado um endereço, não era da região, logo notei.
A vista da estranha correspondência, suspeitei, a princípio, de mofa de velhos ociosos do bairro, mas, não sei porque santo, guardei o velho caderninho numa gaveta do meu criado mudo do meu quarto , e pus a cabeça para pensar em outra coisa.
No dia seguinte, como de costume, comprei pão, um pouco de leite, pouco porque moro sozinha, e um jornal, não que eu tenha costume de le-lo, na verdade eu detesto, detesto esse jornalista sensacionalistas e carniceiros , leio apenas livros, mas tantos anos fazendo isso que o hábito fez o monge.
Chegando em casa passei o café e pus-me a folhear o bendito jornal ,e ,não sei que cargas d’água, meus olhos caíram um anúncio:
“Procura-se aflitamente um pobre caderninho azul que tem escrita na capa a palavra ‘endereço’ e dentro está sujo, rabiscado” e abaixo um telefone.
Fiquei a olhar, sem reação nem uma pra quilo, até que me lembrei da agendinha. Arregalei os olhos e a ideia de pilhéria saltou a mente de novo. Mas razão me sussurrou: “porque se dar ao trabalho de gastar dinheiro com publicações em grandes jornais só para rir de uma velha?”. E essa me convenceu a ligar pro tal número. Busquei meu celular, pois é, pasme, eu tenho um celular, e lido tão bem como lido com meu cachimbo, e telefonei.
Uma voz feminina atendeu logo após o primeiro toque:
- alô?
-alô... é sobre o anúncio...
Antes que eu terminasse houve um ruído, como quando se põe a mão no telefone pra abafar o som, e a voz disse surdamente: “ é do anúncio...” ,novos ruídos.
-alô?- agora falou uma voz masculina.
-Oi é sobre o caderninho azul...- a situação fez com que eu desconfiasse de zombaria novamente.
-sim, sim, essa agenda- começou a explicar apressadamente, como se suspeitasse do que eu estava pensando - é do meu pai, ele mora lá pro norte, lá na Paraíba, ele tá muito doente e quer que eu vá vê-lo, soque o analfabetismo não deixa ele escrever onde ele mora. Ai ele achou melhor enviar o caderninho que ele tinha, que ele sabia que tinha o tal endereço.
- mas como você ficou sabendo?
Achei por bem perguntar,não por curiosidade, mas para eliminar a idéia de anedota.
- lá, na região onde ele mora, quase todo mundo é analfabeto, e quase todo mundo tem alguém que mora em São Paulo, ai de tempos em tempos vai alguém que sabe escrever , ai eles mandão cartas pros parentes. A alguns dias recebi uma carta em que ele falava do seu estado de saúde, e falando que ia mandar a cadernetinha junto. Só que ela se perdeu no correio de lá pra cá, e pelo jeito foi parar com a senhora.
Aquilo me pareceu bem convincente, meditei um pouco e respondi:
- está bem, eu ponho no correio, ai...
- Não! Eu preciso o mais rápido possível, na carta dizia que ele estava mesmo muito mal. Acho que ele pode morrer , ou até já ter morrido.-a voz dele engasgou, confesso que a minha também.
-já sei!- ele disse – tem como a senhora me encontrar na frente de matriz da sé? Amanhã, umas 14:00 horas?
-tem sim, perdão mas ... o seu nome, qual é?
-Lúcio. E o da senhora?
-Maria do Carmo, até amanhã.
-até!
Ele desligou rapidamente.
Pode parecer egoísmo, mas aposto que aquela explicação toda comeu todo meu crédito... Sem contar que o café esfriou.
No dia seguinte lá estava eu, com o pacote nas mãos, e ansiosa por ligar um rosto a uma voz, manias de velha.
-perdão... Dona Maria?...
Virei-me rapidamente. Lúcio era um rapa alto, pálido de voz grossa e sobrancelhas grossas, nem bonito nem feio. As sobrancelhas me chamaram muito a atenção, não sei por quê.
-Sim- respondi.
- eu sou o Lúcio! Obrigado por me ajudar.- ele deu um sorriso simpático e tentou pegar o pacote; tentou porque eu segurava-o como que segura uma parte do seu próprio corpo. Deixe-me explicar.
Quando pus os olhos sobre ele, repentinamente , minha memória despertou, não sei por que, talvez tenha sido a voz ou as sobrancelhas, ligou aquele jovem a meu marido.
A uns quarenta e tantos anos eu era casada, mas um casamento que se arrastava como trapos sobre um cabide, apesar de um filho, de 6 anos na época , eu e meu marido brigávamos muito, discussões causadas pela mais banal das coisas. Agora vejo que era um reflexo das desilusões e decepções que todo casal, após algum tempo de casado sofre( caso ele não se amem realmente), essas coisas agente só aprende a ver depois de velha. Essas discussões, cada vez mais ferozes, fizeram o amor voar como pássaros que fogem do frio, que levantam vôo ao verem a pele enrugar e o sangue esfriar.
E numa dessas brigas , ele, irritado e bufando de um lado pro outro, dando asas a seu gênio de rápida combustão, atirou um vaso no chão, pegou o menino e disse que ia comprar um cigarro e não voltou mais.
Que anos álgidos e desesperados. Nem uma noticia. Meu coração de mãe parecia ser mutilado e dilacerado a cada ano que passou e eu não tinha noticias. Porem o tempo foi passando, as lagrimas secando, e a nevoa da velhice turvou a imagem do meu filho e do meu “marido”, sobrando apenas uma sobrancelha ,que era marcante nos dois.
Não me chame de frívola, mas o tempo anestesiou o coração, e, eu me conformei com a minha não família, com minha casa, seus moveis velhos e quietos, meu cachimbo e a goiabeira nos finais das tardes diversas.
Isso até aquele momento, em que , aquelas sobrancelhas foram como um sopro novo e fresco que renovava a memória ,e fizeram com que eu agarrasse aquele pacote tão avidamente.
Senti todos os fluidos do corpo gelarem , e as lagrimas ruborizarem a face quente; então criei coragem e perguntei:
- Posso fazer uma pergunta?- a voz quase não saiu, e eu me fiz o mais forte possível pra não me desfazer em pranto. –quantos anos você tem?
Ele me olhou impaciente, com essa que todos os jovens têm hoje não é preciso muito para irritá-los e entediá-los.
Enfrente a matriz da cidade de São Paulo os dois sentiam-se constrangidos, o silêncio dos carros passando, dos pombos voando e de nós nos olhando era o limiar de transcendência que a palavra pode suportar.
- Por que a pergunta?
Eu não sabia a resposta. Ele insistiu:
- porque a senhora me pergunta isso?
- me deixa explicar...
E lá fui eu narrar essa Historia que a pouco vocês leram. Ele de começo ficou perplexo, mas aos poucos um sorriso abriu-se e ele desabou a dar risada. Aconteceu que eu fiquei perplexa, como pode meu filho q eu não via a quarenta anos zombar de mim assim, no meio da praça da Sé, agachando de tanto rir?
- Minha senhora, Dona Maria, desculpe eu fazer a senhora reviver esse momento do seu passado, e perdoe essa minha falta de compostura com a senhora, e que eu não pude me conter, o Destino brincou coma senhora D. Maria, minha mão morreu tem três anos e meu pai nunca saiu da Paraíba, eu vim para São Paulo com vinte e dois anos, por isso não existe a menor possibilidade de eu ser seu filho. Mas de qual quer forma obrigado por trazer o caderninho, vai me ajudar a estar ao lado do meu pai na hora dele partir. E se a senhora puder soltar o pacote...
Eu não acreditava no que eu ouvia, todo tempo desconfiando dos velhos da rua e agora descubro que foi o rei dos velhos que zombava de mim...
Em fim, o que me restou fazer naquele dia foi sentar na varanda e ver o sol se por como tantos outros dias, sem marido, sem filho... Apenas com um cachimbo, e a certeza de que o que alegrava aqueles raios de sol era a minha vida que fizera sorrir o destino maldoso.
Obrigado, sempre seus, Vito Julião de Azevedo
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